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1. José Francisco Filho: Pioneiro do cinema no sertão

Cine Ipanema - 75 Anos - 1949/2024
(Santana do Ipanema -Alagoas)

PESQUISA/TEXTO/PRODUÇÃO: Romero Azevêdo (Jornalista, Professor Aposentado da UFCG, filho de Zé Francisco)
REPRODUÇÃO DAS ILUSTRAÇÕES E DOCUMENTOS: Marcus Azevêdo (Major da PM da Paraíba, neto de Zé Filho)
DESIGNER DO BLOG: Caio Márcio (Web Designer e Programador)
REVISÃO: Rafael Azevêdo (Engenheiro de Pesca; Servidor Público da Procuradoria Geral da República em Natal-RN, neto de Zé Filho)


"O passado não tem existência enquanto ele não é registrado no presente." (John Wheeler, físico teórico estadunidense)

"A história não é só aquilo que aconteceu, mas como recordamos o acontecido." (Peter Brown, foi diretor-executivo da Apple Corps, a holding dos Beatles, de 1968 a 1970)

"O que lembro, tenho." (Guimarães Rosa)


O limiar da arte de luz, sombras e sons no médio sertão das alagoas foi proporcionado por um santanense apaixonado por sua terra. Essa é uma homenagem a José Francisco Filho, em forma de resgate histórico-sociocultural, com o propósito de remir e preservar a sua história.

José Francisco Filho (Zé Filho) e sua irmã Maria do Amparo Pereira de Azevedo

DEDICATÓRIA:

A todos os personagens da vida real, nossos familiares, que participaram diretamente deste belo episódio, pleno de sonhos, coragem, pioneirismo, determinação e amor.

Ao meu irmão, Fernando Azevêdo (Badú, in memoriam ), único dos descendentes nascido em Santana.

Aos demais santanenses, em especial ao amigo fraterno João Tertuliano Nepomuceno Agra.

2. 1949...

No final da década de 1940, início dos anos 1950, a cidade que traz em seu nome a santa cujo culto foi oficializado pelo Papa Urbano IV no ano 1378, já era uma cidade com 74 anos de emancipação política (levando-se em consideração a Resolução nº 681, de 24 de abril de 1875, que a desmembrou da Comarca de Traipu). Segundo dados do Sexto Recenseamento do Brasil, divulgados pelo IBGE em 1950, a população de Santana do Ipanema era de 61.235 habitantes (incluindo os então distritos de Maravilha, Olho D’água das Flores e Poço das Trincheiras), isso significava mais da metade da população da Capital Maceió que no mesmo período tinha apenas 120.980 habitantes.

A organização urbana não era uniforme, mas tinha suas praças e ruas onde despontavam alguns exemplares de imponentes e belos prédios, erguidos segundo os cânones da arquitetura neoclássica e infelizmente hoje desaparecidos. A igreja matriz, uma relíquia desse tempo, foi preservada da reestruturação progressista que tocada pela premente necessidade de desenvolvimento delapida o patrimônio, desfigura a identidade histórica e borra para sempre da memória da população os outrora tradicionais pontos de orientação coletiva. Porém, é importante e justo reconhecer que muitas vezes a reordenação urbana impõe sacrifícios à memória de uma cidade, os antigos traçados urbanísticos, com ruas estreitas, becos sem saída, calçadas irregulares e edificações desalinhadas são redesenhados para atender as exigências do presente dando nova feição a paisagem física da cidade e nesse trabalho as demolições estão incluídas. É lamentável, mas é assim que funciona. "A força da grana, que ergue e destrói coisas belas", como já cantou o poeta.

A matriz de N.S. Santana, majestoso templo que mais se assemelha a uma catedral, resiste firme, imune aos tentáculos dos novos traçados da geografia urbana, e ainda hoje é ponto de referência no cenário secular- já beirando o sesquicentenário- daquela parte do centro unindo gerações que a trazem guardada em seu repertório pessoal e afetivo de imagens da cidade amada. Foi na pia dessa igreja que o pioneiro do cinema no sertão Zé Filho e a irmã Amparo receberam o sacramento do batismo pelas mãos do padre Bulhões, ele, nascido em 9 de março, em 1921, ela em 1922.

Igreja Matriz de N. S. Santana na época do Cine Ipanema

A feira semanal de Santana do Ipanema era bastante movimentada naquele final das quatro primeiras décadas do século 20. A feira reunia uma pequena multidão também vinda dos distritos, cidades e povoados encravados na região banhada pelo abençoado rio Ipanema. Esse ponto de convergência humana era um cenário vivo por onde desfilavam os tipos mais variados de personagens, comprando e vendendo naquele espaço multicultural que despertaria, sem dúvida, o interesse de qualquer antropólogo ou sociólogo que a visitasse. A feira atraia ainda para o seu pátio a céu aberto os artistas populares, cantadores, emboladores e declamadores dos versos imortais impressos nos folhetos de cordel. Nesse cenário multicor, além do abastecimento semanal dos alimentos necessários para a vida, que incluía animais vivos para o abate como galinhas, perus, bodes, carneiros, galinhas d’angola, pebas, tatus, e uma iguaria muito apreciada: o jabuti. Além disso, também se comprava a roupa, o vestido de chita, a calça de algodão, o “brim-caqui” para forrar malas ou cadeiras, a casimira (mais cara), própria para a confecção de ternos mais refinados, o chapéu de couro ou de massa, o calçado (se destacando a alpercata de rabicho, a preferida da maioria), o fumo de rolo de Arapiraca, os “quebra-queixo”, “rasga boca”, cocadas e alfenins que faziam a alegria da criançada. No fim da jornada, os homens davam uma pausa para tomar umas "lapadas" de cachaça (as mais variadas), acompanhadas por tira-gosto especial.

Universo multicultural na feira em Santana do Ipanema

A área do centro da cidade tinha o calçamento conhecido como pé de moleque (pedras irregulares socadas no chão, técnica da época do império) por onde circulavam alguns automóveis que dividiam com os carros de bois e os tradicionais jumentos aguadeiros (carregando água do rio para vender nas casas, ainda não havia saneamento básico) o tráfego pelas poucas artérias pavimentadas. O fornecimento de energia elétrica acabara de ser renovado sob a égide de uma usina com motor mais potente alimentado a óleo diesel que fornecia luz diariamente entre as 7 e 10 da noite, depois disso luz mesmo só na base de candeeiros, velas e lampiões a querosene.

Calçamento em pé de moleque na rua Barão do Rio Branco em Santana do Ipanema

As festas religiosas, como o São João, São Pedro e Senhora Santana, as novenas e procissões compunham momentos singulares da vida na cidade. Além dos ofícios nas igrejas, as quermesses com seus brinquedos armados no meio da rua, os pastoris e as barracas com variados jogos como: argolinha, pescaria, roleta e o jogo do preá, faziam a alegria da população naquele tempo em que o lazer coletivo era escasso. O trabalho dos tradicionais fogueteiros e os balões juninos que salpicavam de luzes e cores o céu estrelado formavam um espetáculo de rara beleza e era muito apreciado.

Registre-se também que fazia pouco mais de uma década que Lampião, Maria Bonita, Luiz Pedro, Quinta-Feira, Mergulhão, Elétrico, Alecrim, Colchete, Caixa de Fósforo, Macela e Enedina haviam sido fuzilados e degolados na Grota do Angico em Sergipe pondo fim ao ciclo do banditismo armado conhecido como cangaço que predominou e aterrorizou os sertões nordestinos por mais de três décadas. Mas a lembrança desse tempo em que a bala vinha antes da razão ainda permanecia muito viva na memória dos santanenses, mesmo porque a cidade fora palco da exposição macabra das cabeças degoladas dos bandidos na escadaria da igrejinha do Monumento.

Maria do Amparo, irmã de Zé Filho, na adolescência

Maria do Amparo Pereira de Azevedo, a única irmã de José Francisco, nosso principal personagem nessa narrativa, lembra o momento em que o pequeno caminhão trazendo as cabeças dos cangaceiros entrou em Santana no final de julho de 1938, diz ela: “Era por volta de uma da tarde, eu estava fazendo meus afazeres em casa,sozinha, sentada na mesa, de repente aquele barulho de buzina e do motor do caminhão e uma gritaria na rua, corri até a janela sem saber o que acontecia, então vi, passando bem em frente a nossa casa (Rua Barão do Rio Branco, 32), um soldado em cima da carroceria de um caminhão com uma cabeça segurada pelos cabelos numa mão e um facão manchado de sangue coalhado na outra”. Amparo disse que o soldado gritava brandindo o facão “Tão vendo aqui? É sangue de bandido que nós cortamos a cabeça! Acabou o reinado de Lampião!”. Essa imagem aterrorizou a jovem Amparo, recém entrada na adolescência. As outras dez cabeças dos cangaceiros estavam embebidas em álcool dentro de latas de querosene em cima da carroceria do pequeno caminhão. O horrendo séquito, seguido por uma pequena multidão, foi subindo na direção do centro.

Cena do filme "Os últimos cangaceiros", de Wolney Oliveira (2011)

Nesse período da história que contextualiza o recorte que fazemos neste resgate, as potências ocidentais que saíram vitoriosas da segunda guerra continuavam a reconstrução da Europa e do Japão, ao mesmo tempo a criação da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte, surgida em abril de 1949) preconizava o inicio da guerra fria entre a Rússia e os Estados Unidos.

Em 14 de julho de 1949, teve início o último julgamento de criminosos de guerra nazistas em Nuremberg.

No oriente, especificamente na China, os comunistas, liderados por Mao Tse-Tung, tomavam o poder e destruíam com fuzis e baionetas cinco mil anos de tradições e história, notadamente no Tibet.

Aqui no Brasil, na capital Maceió, uma tragédia provocada pelas fortes chuvas que caíram em grande parte do estado(inclusive em Santana) no mês de maio de 1949 trouxe morte e destruição como nunca vistas antes. Cerca de 70 horas de chuvas provocaram a queda de barreiras e uma tromba d’água, que desceu o Riacho Salgadinho destruindo casas e pontes do Vale do Reginaldo, incluindo a Ponte da Av. da Paz, tudo isso entre os dias 18, 19 e 20.

O governador da época, Silvestre Péricles de Góes Monteiro, diante da calamidade pediu ajuda ao Governo Federal para abrigar os flagelados e recuperar as muitas cidades atingidas no estado, inclusive na área ribeirinha do rio São Francisco. O prefeito de Maceió nesse período era João Vasconcelos.

O sucesso musical era "Juazeiro", baião de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, um 78 rotações lançado pela RCA em outubro do ano anterior. Ouça aqui:


Governador Silvestre Péricles (Foto: Jean Manzon)

3. Oásis de cultura e arte

Apesar dessas pequenas ofertas de lazer artístico-cultural, sempre na feira semanal ou nas festividades religiosas ao longo do ano, o cenário geral nesta área era desértico naquele momento do tempo em Santana. Nesse contexto, o Cine Ipanema surgiu como um verdadeiro oásis naquela exígua paisagem cultural, a miragem da tela iluminada e os sons que a realçavam saciava a sede de lazer e cultura da população, introduzindo naquele micro universo, onde a crua realidade da vida com suas dificuldades e dissabores atingia a todos, uma oportunidade única para o enriquecimento imaterial, e divertimento ameno, através das narrativas cinematográficas que introduziam novas paisagens, novos tipos humanos, novas formas de ser e viver. Esse contemporâneo tsunami de informações que invadiu o imaginário santanense de forma original (excêntrica até), transformou para sempre a forma de ver e compreender o mundo em que vivemos, os matutos (aqueles que acordam com a estrela matutina, segundo a correta leitura da Roma antiga) davam um gigantesco salto no tempo sendo catapultados do arcaico século 19 (em termos de lazer e cultura), numa velocidade deslumbrante, para o centro da erupção do já cinquentenário século 20.

Quando estamos vivenciando, tomando parte dos eventos no momento em que eles acontecem, muitas vezes não nos damos conta da sua importância, do seu real valor. O distanciamento no tempo proporciona uma leitura mais acurada, historiográfica, assentada nos dados que dispomos hoje e que nos permitem uma visão mais ampla de tudo aquilo que aconteceu no passado. O caso do Cine Ipanema, e seu fundador, o pioneiro José Francisco Filho, se encaixa perfeitamente como exemplo disso.

Zé Filho, o pioneiro

Aqui o termo “cinema” deve ser entendido como uma sala fixa de exibição permanente, registrada como tal nas distribuidoras de filmes e na empresa de energia elétrica local e com tecnologia de projeção sonora, movida a eletricidade (os projetores primitivos eram mudos, movidos a manivela e com iluminação feita por uma lanterna alimentada com carbureto).

4. O protagonismo do cinema naqueles tempos primeiros

O homem sempre buscou perpetuar em imagens sua trajetória sobre a terra. Ainda na pré-história, as cavernas abrigavam desenhos que reconstituíam animais e cenas de caça. No multissecular Egito os papiros e as paredes e colunas dos templos, tumbas e palácios foram cobertos por desenhos coloridos que ainda hoje intrigam e encantam povos de todo o mundo. Na China, nos primeiros momentos dessa civilização, a Lanterna Mágica já procurava dar movimento aos desenhos projetados sobre uma delicada tela da mais pura seda. Mas é no século XIX que os aprimoramentos técnico-científicos vão permitir uma reprodução mais fiel da realidade através da fotografia e, sobretudo, do cinema.

Nomes como Wlliam Friese-Greene, Thomas Alva Edison, Etienne-Jules Marey, Louis Le Prince, Louis e Auguste Lumière, George Mèliés, D.W. Griffith, entre muitos outros, foram os pesquisadores, empreendedores e artistas que dedicaram suas vidas para proporcionar a humanidade o que hoje chamamos de cinema ou audiovisual.

Essa maravilhosa invenção só foi possível porque todos os seres humanos possuem um “defeito” ótico chamado cientificamente de “persistência da retina”. Em síntese é o seguinte: o olho envia para o cérebro, uma a uma, as imagens que capta. O cérebro não consegue decodificar essas imagens instantaneamente criando assim um intervalo de 1/24 avos de segundo entre uma imagem e outra que recebe dos olhos. A técnica do cinema (da televisão e do celular também) é essa, são projetadas 24 fotografias fixas por segundo causando a ilusão ótica do movimento (sabe-se também que a cumplicidade psicológica dos espectadores é fundamental para a materialização do espetáculo audiovisual).

O cinema foi a principal marca da modernidade no século 20. Não bastava a cidade ter biblioteca, automóveis, luz elétrica, prefeitura, câmara de vereadores, juiz, escolas... O que selava a entrada da cidade na era da modernidade era a instalação de um cinema!

O cinema foi sem dúvida a “arte do século 20”, na afirmativa do cineasta Glauber Rocha. O último filho da Revolução Industrial trouxe para o campo da arte e do entretenimento a principal criação daquela reviravolta iniciada na Inglaterra no século 17: a máquina.

Sintetizando, podemos dizer que o cinema, em sua forma narrativa, é uma máquina de contar histórias.

O cinema unia arte, cultura e, sobretudo tecnologia, tudo isso movido a energia elétrica, outro signo de progresso naquela primeira metade do século 20.

No ano de 1949, o cinema e a modernidade finalmente chegaram a Santana do Ipanema pelas mãos de um de seus filhos, o ex-combatente da segunda guerra mundial José Francisco Filho (que lutou naquele conflito entre as nações ao lado dos conterrâneos Darci de Araújo Melo, Alberto Nepomuceno Agra, Vandir Brandão, João Aquino Silva, José Francisco dos Prazeres, Osório Nobre, Pedro Pacífico Filho, Pedro Alves da Silva e Sandoval Vieira Barros).

O primeiro contato de José Francisco Filho com a invenção codificada num só aparato, pelos franceses, irmãos Lumière, foi na cidade de Santos, São Paulo, no ano de 1938. Com o espirito aventureiro que o caracterizava, pediu permissão ao pai e embarcou num caminhão para o litoral paulista a fim de se encontrar com um tio que morava na cidade portuária. Nessa época tinha acabado de completar 16 anos e foi lá em Santos onde entrou pela primeira vez num cinema. Aquela experiência única causou uma forte impressão no jovem sertanejo, num depoimento dado a nós ele disse que a primeira coisa que pensou diante da tela iluminada naquela distante Baixada Santista foi "ah, se meus conterrâneos também pudessem ver isso!". Onze anos depois, e uma guerra mundial pelo meio (guerra para a qual se alistou como voluntário), levaria para o desfrute dos conterrâneos o moderno, inigualável e maravilhoso mundo do cinema.

Foi em Santos também onde o jovem José viu num jornal a manchete anunciando a morte de Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros do bando.


Neste século 21 vivemos uma verdadeira “sociedade das imagens”, existe uma saturação de imagens em movimento onde quer que nos encontremos, na rua, em casa, na escola, no trabalho, no shopping, o que não falta é imagem e som artificiais. Hoje, a impressão que se tem é a de que a realidade tem de ser confirmada pela imagem virtual para poder ter credibilidade, diante de qualquer fato acontecido vem logo a pergunta: “filmou?” A antropóloga Débora Bolsanello confirma essa verdadeira adição desses tempos de agora numa entrevista dada ao jornal "O Globo" do Rio de Janeiro em outubro de 2017, diz ela com propriedade: “Passamos mais tempo olhando telas que pessoas”.


Mas, no mês de abril do ano 49 do século 20, há setenta anos, no interior do nordeste brasileiro, as imagens artificiais, incluindo as fotografias, eram raríssimas. Nesse universo da reprodução da realidade através de aparatos óticos-químicos-mecânicos, o cinema reinava absoluto e seu poder de encantamento e sedução visual beirava o sobrenatural, era algo que, para o senso comum, estava mais próximo da magia que da tecnologia. O ritual da sala escura, se assemelhando às cavernas primitivas da pré-história de onde o homem assistia a tudo passando “lá fora” sem ser molestado, a experiência do desfrute coletivo do filme, tal e qual um culto profano às imagens dos “deuses” da tela grande (lembrando,talvez, no inconsciente dos espectadores a reunião dominical na igreja para a celebração da liturgia católica diante das imagens do altar). É nesse contexto de descobertas, cerimônia, rito e deslumbramento com o novo culto pagão, trazido no bojo da modernidade, que surge o hoje quase lendário Cine Ipanema.

5. A origem de tudo

Filho do mestre em ourivesaria José Francisco de Azevêdo e Maria das Dores Pereira de Azevêdo, Zé Francisco Filho era irmão de Maria do Amparo Pereira de Azevêdo. Casado com a professora baiana Wanda Elizabeth Ferreira de Azevêdo Filho ele era sobrinho, por parte de mãe, de Dona Clemencia Pereira, a “madrinha Quelé”, que mantinha uma das primeiras pensões de Santana e tinha como hóspede o hoje quase mitológico coronel José Lucena Maranhão, segundo prefeito constitucional da cidade e primeiro deputado estadual representando Santana na Assembleia Legislativa do Estado no ano de 1950 (o coronel Lucena morreu em maio de 1955, licenciado do cargo de prefeito da capital Maceió para tratamento de saúde em Recife). Zé Filho era primo legítimo dos irmãos Raul e José Pereira Monteiro (da coletoria), filhos de Dona Ana Rosa, irmã de Dona Dorinha sua mãe. Por parte do pai, Zé Filho era primo de Zé Azevedo, sobrinho de José Francisco.

Vamos abrir um parentese para relatar um fato no mínimo curioso protagonizado pelo ourives José Francisco (pai). Na época em que os cangaceiros assombravam o sertão e ameaçavam invadir as cidades para saquear tudo, José protegeu seu patrimônio de forma criativa e inteligente: derreteu todo ouro e prata que tinha e transformou em grossos pregos que pregou nas paredes da casa e usava como cabide para chapéus, sobretudo, toalhas... Quando precisava do ouro ou da prata para confeccionar suas apreciadas alianças, correntes, pingentes e outras jóias feitas com muito esmero e arte, pegava um desses "pregos", derretia e usava.

José Francisco de Azevedo e sua esposa Maria das Dores Pereira de Azevedo, pais de Zé Filho

José Francisco Filho conheceu a baiana de Salvador Wanda Elizabeth no Rio de Janeiro no dia do desfile dos pracinhas que retornavam vitoriosos dos campos de batalhas na Itália. Ela, que ainda não tinha completado 18 anos, morava com a tia Alice e o esposo (que eram hóspedes residentes do célebre hotel Copacabana Palace) e estudava num dos colégios da então Capital Federal. Na manhã de 18 de julho de 1945 foi com as colegas estudantes dar as boas vindas aos heroicos soldados brasileiros que desembarcavam no porto do Rio vindos da Europa. No desfile triunfal dos pracinhas na Avenida Rio Branco no centro da cidade tomado por mais de 800 mil pessoas (segundo crônica da época), ela viu o “cabo Filho”, airoso em seu traje de combate mas exausto pelos mais de 15 dias de viagem de navio do Velho Continente até o Brasil. Ele usava um legítimo óculos Ray-Ban (presente de um colega do exército americano) para esconder as olheiras provocadas pelas noites mal dormidas na travessia do Atlântico, e ostentava na face um vasto bigode negro que deixaria de usar anos depois. A jovem estudante soteropolitana não resistiu. Foi amor à primeira vista. Depois de uma longa troca de cartas, casaram-se em 1948 e foram morar em Campina Grande-PB, onde os esperava um tio de José por parte de mãe (o também santanense Francisco Alves Pereira) que era diretor geral da empresa multinacional Sociedade Algodoeira do Nordeste Brasileiro-Sanbra (hoje Bunge) e tinha uma vaga de trabalho para o sobrinho.

No final da década de 1940, depois do nascimento do primeiro filho Gilvan, resolveram morar em Santana onde ainda residiam os pais e a irmã de José. Ele tinha 28 anos, ela 22. Ao chegarem, Wanda logo assumiu o cargo de professora de geografia no recém-fundado Ginásio Santana, ele decidiu realizar o antigo sonho abrindo o primeiro cinema da cidade.

José e Wanda com o primogênito Gilvan em fevereiro de 49, antes do embarque para Santana

No mês de março de 1949, Zé Filho acomodou a esposa e o recém nascido na casa dos pais e partiu para Recife onde comprou o projetor de 16 milímetros e foi pessoalmente assinar o contrato de exibição na distribuidora de filmes RKO Radio Filmes, que ficava no Recife Antigo na rua Marquês de Olinda, 820. O primeiro contrato firmado pelo Cine Ipanema tinha a duração de 12 meses a partir de 1 de abril de 49 até 31 de março de 50. Pelo contrato seriam exibidos 4 filmes da RKO por mês num valor total de CR$ 13.780,09 (treze mil, setecentos e oitenta cruzeiros e nove centavos).

Primeiro contrato do Cine Ipanema com a RKO Filmes em abril de 1949

Zé Filho aproveitou essa primeira viagem para fechar outro contrato, dessa vez com a Paramount Films que ficava na mesma rua, número 290. Esse contrato foi renovado em janeiro de 1950 conforme atesta a carta abaixo:


Ainda em Recife, em março de 49, entrou no número 200 da Marquês de Olinda, endereço da Metro-Goldwyn-Mayer, a produtora do leão que ruge na abertura dos filmes, fechando um novo contrato de exibição.

Em todos os contratos uma observação: Via Férrea p/ Palmeira dos Índios-Alagoas, ponto final do ramal ferroviário que unia Pernambuco a Alagoas. Naquela época, grande parte da distribuição de filmes era feita via estrada de ferro.

Recibo de um frete ferroviário da Great Western Railway, datado de 31 de agosto de 49, devolução de um filme para a distribuidora RKO em Recife

6. Modernidade, arte e cultura

Era uma empresa familiar, a irmã Maria do Amparo vendia os ingressos na bilheteria e guardava a renda da sessão numa caixa de charutos Talvis, o porteiro era o próprio José Filho, o cunhado Fernando, exímio desenhista, pintava e abria os letreiros nos cartazes que anunciavam os filmes do dia e os programados para serem exibidos em breve, Wilma, a cunhada adolescente, tinha 14 anos, auxiliava Amparo.

Eram duas sessões semanais, uma no sábado e a outra no domingo, sempre à noite. O cinema precursor, além das cadeiras disponíveis, franqueava aos espectadores o direito de levar seu próprio assento (cadeiras, bancos ou tamboretes), um costume comum em muitos cinemas da época como pôde ser visto numa cena do clássico “Cinema Paradiso” de Giuseppe Tornatore (1988). Quando o último espectador da noite adentrava no salão, José Filho apagava as luzes do salão do grande sobrado -hoje demolido- onde funcionava o Cine Ipanema e iniciava a sessão, operando ele mesmo o projetor de 16 milímetros americano, marca Thompson.

Fernando Mario Ferreira, cunhado de Zé Filho, responsável pela publicidade do cinema

A partir daí começava na tela branca o desfile dos astros da chamada Sétima Arte, um espetáculo novo, diferente de tudo que já se tinha visto em termos de entretenimento na cidade, um jeito diferente de espiar a vida, de conhecer novos lugares sem precisar viajar, um sonho de olhos abertos. Tudo isso encantou a então pequena Santana que alçava um grande voo rumo à modernidade, nas asas da já consolidada” indústria cultural” (preconizada por Adorno e Horkheimer).

O filme inaugural do Cine Ipanema foi exibido no dia 3 de abril de 1949, um domingo. Em cartaz, "Justiça Vingadora", um western (ou faroeste) estrelado por Tim Holt. Antes do filme principal foi exibido um "short" (curta metragem que complementava as sessões de cinema), intitulado "Viva México", episódio da série "Assim é a América", produzida pela RKO Radio Filmes.

Fatura da RKO referente ao primeiro filme e complemento exibidos no Cine Ipanema em abril de 1949

"Justiça Vingadora", marco original do cinema no sertão alagoano

7. A origem do nome

O cineasta mineiro Humberto Mauro (1897-1983), considerado pelo grupo de cineastas do Cinema Novo como o fundador de uma “cinematografia brasileira”, fez seus primeiros filmes ainda na época do cinema mudo, nos anos 1920, na cidade de Cataguazes, interior de Minas Gerais. Os filmes eram feitos ali mesmo, "no fundo do quintal” como se diz popularmente e Mauro, que tinha origem rural, utilizava e valorizava a paisagem do campo em seus filmes pioneiros.

Numa entrevista ao Jornal do Brasil do Rio de Janeiro, em abril de 1973, quando lhe perguntaram como se definia no campo do cinema, Mauro disse: “Não sou literato. Sou poeta do cinema. E o cinema nada mais é do que cachoeira. Deve ter dinamismo, beleza, continuidade eterna”.

Humberto Mauro

Quando José Francisco Filho decidiu levar o cinema para o seu querido sertão, escolheu o nome Ipanema para batizar a sala precursora que se inaugurava. Poderia ter sido Cine Santana (homenagem à padroeira) ou Cine São José (uma homenagem ao santo que dava nome ao pai e a ele mesmo), mas de tudo que existia na cidade que o viu nascer, das memórias afetivas que calavam fundo em sua alma, o que mais se aproximava do cinema era mesmo o mítico “Panema” (uma rima poética para cinema, e se trocar as duas primeiras sílabas por “ci”...); assim como a cachoeira de Mauro lá na Zona da Mata das Gerais, o célebre rio que nasce em Pernambuco e tem sua foz em Alagoas tinha “dinamismo, beleza e continuidade eterna”.

O mítico rio que emprestou o nome para a sala de exibição pioneira

José e Humberto não se conheciam, não importa. O que importa é essa sintonia cósmica entre os dois pioneiros do cinema no interior, cada um ao seu modo, mas ambos reverenciando e homenageando a paisagem natural onde cresceram livres e felizes, o “cinema transcendental” no dizer de outro poeta, o baiano Caetano Veloso.

O pesquisador, professor, escritor, crítico e ensaísta Paulo Emílio Sales Gomes, autor do livro seminal “Humberto Mauro, Cataguazes, Cinearte” (1974), disse sobre o pioneiro cineasta brasileiro:

“Mauro se pôs a fazer cinema não porque fosse intelectualmente moderno, pois não o era, mas porque possuía o gosto e o talento da mecânica. Inicialmente, foi o lado mecânico da máquina de filmar que o conquistou. O que permitiu a Mauro superar-se intelectualmente foi a alegria criadora do manejo de uma máquina de filmar.”

O mesmo se pode dizer de Zé Francisco, não era um intelectual no sentido pleno que conhecemos hoje, mas era um homem culto, sempre aberto ao novo. Quando chegou da guerra, por exemplo, trouxe uma preciosa coleção de fotografias que incluía cenas das cidades históricas de Pompéia e Herculano (destruídas pela erupção do vulcão Vesúvio, no ano 79 na Itália), e uma iconografia completa sobre a vida de Napoleão Bonaparte que adquiriu na França. Tinha então apenas 24 anos. Em sua casa em Campina Grande, as estantes eram repletas de coleções de livros que adquiria regularmente, clássicos como a "História Universal" do notável intelectual e escritor italiano Cesare Cantù, obra de fôlego diluída em 72 volumes, e os romances futuristas de Jules Verne (tido como um dos pais da ficção científica) podiam ser encontrados naquela diversificada biblioteca particular.

Em 1959 reviveu os tempos do Cine Ipanema promovendo uma exibição pública do filme "Céu sobre o pântano- Santa Maria Goretti" no meio da rua, com um projetor que tomou emprestado do SENAI onde lecionava, mais de uma centena de pessoas se aglomerou para ver aquele cinema de graça, ao ar livre, franqueado para todos sem distinções.

Na música a ópera "Carmem" de Bizet, o "Bolero" de Ravel e o tango "La Cumparsita, eram as suas preferidas. Sobra dizer que era um frequentador assíduo do Cine Avenida, cinema do bairro da Prata onde morava. Em 1962 adquiriu um dos primeiros televisores que apareceram no comércio local e recebia generosamente -como nos tempos do cinema-os chamados "televizinhos" para compartilhar a programação das TVs Radio Clube, Canal 6 e Jornal do Comércio, Canal 2 de Recife e TV Borborema, Canal 3 de Campina Grande.

A informação diária chegava na casa de Zé Francisco através dos jornais Diário da Borborema, Diário de Pernambuco, Jornal do Comércio, Última Hora e O Globo( estes do Rio de Janeiro), comprados todos os dias da semana. Também lia semanalmente as revistas O Cruzeiro, Manchete, Fatos e Fotos e Veja.

Assim como Mauro, além do primeiro encantamento com as imagens em movimento, o pendor para a mecânica e a alegria do manejo de um projetor cinematográfico, ou como se dizia na época “máquina de passar filmes” (novidade indiscutível naquele momento), conquistou o jovem José Francisco Filho e o arrebatou definitivamente para o fascinante mundo do cinema.

8. Tecnologia inovadora

José Francisco era um homem de muitas habilidades, especialmente com máquinas e motores. Hoje os filmes de cinema são exibidos em suporte digital, mas naquela época eram impressos em fitas de celuloide e acondicionados em rolos que eram colocados no projetor. Cada rolo continha cerca de 45 minutos de filme, para uma exibição completa era preciso dois rolos. O Cine Ipanema tinha apenas um projetor, a troca de rolo causava um inconveniente pois a projeção era interrompida, violando assim o fluxo contínuo do espetáculo. Essa operação levava em média uns 10 minutos, tempo suficiente para “tirar o gosto” do filme. Zé Filho teve então uma ideia e colocou em prática: fez ele mesmo um rolo de metal que dava o dobro do tamanho dos convencionais e acomodava nele o filme inteiro sem ter a necessidade de interromper a sessão para a troca (mais de 40 anos depois uma variante dessa mesma tecnologia inventada por ele seria utilizada nos cinemas multiplex dos shoppings antes da atual era digital).

Projetor de filmes na bitola de 16 milímetros

9. Energia precária

A luz elétrica ainda não era de Paulo Afonso cuja primeira usina só seria inaugurada em janeiro de 1955, havia a Empresa Municipal de Luz e Força que fornecia energia gerada através de um motor alimentado com óleo diesel. A lâmpada do projetor do cinema era de 750 watts, as constantes oscilações do suprimento de energia, com baixas e altas repentinas da corrente, vez em quando queimava as lâmpadas o que obrigava o cinema a ter algumas unidades de reserva. Essas lâmpadas eram caríssimas, importadas do exterior pela filial de Recife da loja de origem germano-argentina “Lutz Ferrando”, especializada em produtos óticos-científicos.

Recibo de pagamento da energia elétrica (notar o registro da atividade "cinema")

10. “Como ele esconde tudo isso?”

Além de grande novidade, o cinema despertava a curiosidade de todos os frequentadores. Maria do Amparo, irmã de José Francisco Filho, conta que um dia um assíduo espectador se dirigiu a ela dizendo que o que mais admirava no Cine Ipanema era a rapidez com que Zé Filho escondia tudo atrás da tela, “como assim?”, perguntou; e ele explicou “assim que termina o filme, quando acende a luz da sala, ele já pegou aqueles cavalos, aqueles homens e mulheres, aquelas carroças, aquelas casas, aquelas armas e escondeu tudo ligeiro e a gente não vê mais nada!”

11. Feito a mão

Numa tarde, José Francisco Filho se encontrava no primeiro andar do velho sobrado revisando os rolos do filme que seria exibido logo mais à noite. De repente chega um amigo, pede licença, entra na cabine de projeção e diz a José que gostaria de ver “como é o filme”. José mostra a sequencia de fotogramas impressos no celuloide, o amigo agradece e sai. Logo depois, lembra a irmã Amparo, o amigo se reúne com outros amigos e conta a experiência de ter visto como era o filme projetado na tela do Cine Ipanema: “uma sequencia de imagens toda desenhada a mão pelo paciente e habilidoso Zé Filho, ele passa o dia desenhando para poder ficar pronto de noite”.

Fragmento de película 16mm

12. Quem viu um, viu todos

José Francisco, pai de Zé Filho, assistiu a sessão do filme que inaugurou o cinema naquele começo do mês de abril do ano de 1949. Na semana seguinte estava lá, sentado na porta, observando o movimento dos espectadores entrando para a nova sessão. Um amigo se aproximou e disse: “Vamos seu José, vai começar agora”, impávido ele respondeu “Já vi”, o amigo insistiu: “Não é o da semana passada não, hoje é outro”. Imóvel como um monge budista que se prepara para a meditação, seu José perguntou: “São uns retratos falando e se movimentando?” O amigo falou: “É assim mesmo”, o experiente ourives encerrou o diálogo: “Já vi”. E nunca mais entrou num cinema na vida.

13. Exibição itinerante

Algumas vezes o introdutor do cinema no sertão alagoano pegava o projetor e promovia sessões itinerantes nas cidades de Pão de Açúcar (nesse tempo ainda um distrito do município de Glória-BA) e Batalha. Os filmes eram alugados nas filiais das distribuidoras americanas instaladas em Recife (notadamente a Paramount e a RKO), vinham de trem, via Palmeira dos Índios e de lá até Santana por ônibus. Algumas vezes, na baldeação, o encarregado da distribuidora perdia o horário em Palmeira e não conseguia enviar o filme, quando o ônibus chegava sem os rolos a frustração era geral, de Zé Filho e dos espectadores que sabiam que naquele fim de semana não haveria exibições.

14. Sirene avisava o público

No alto do velho sobrado, Zé Francisco Filho instalou uma sirene movida a manivela que era acionada três vezes todas as noites em que haviam exibições. A primeira vez quando faltava meia hora para o filme começar, a segunda vez quando faltavam 15 minutos e a última quando faltavam cinco minutos. Era uma forma de alertar os espectadores e convocá-los para mais uma sessão cinematográfica no primeiro cinema de Santana do Ipanema. O som da solitária sirene ecoando na noite da cidade compunha o imaginário coletivo dos santanenses e era uma espécie de “sinônimo sonoro” de cinema.

Sirene semelhante à utilizada no Cine Ipanema

15. “Eu quero que eles vejam”

Não foram poucas as vezes que alguém chegou na porta do Cine Ipanema, olhar pidão, sem dinheiro para o ingresso e Zé Filho franqueava a entrada. O pai, observando aquela generosidade permanente do filho, alertou: “Desse jeito vai faltar dinheiro para o aluguel da sala e a conta de luz”, Zé Francisco dizia: “Tem nada não, eu quero mesmo é que eles vejam o que é um cinema!”. Foi com esse espírito desprendido, visando mais a apresentação e compartilhamento da novidade do que propriamente a parte comercial, que José Francisco Filho, sem nenhuma pretensão de ser reconhecido por isso, acabou lançando em sua querida Santana o marco fundador da atividade cinematográfica, inaugurando assim um novo tempo no campo cultural da cidade proporcionando aos seus habitantes o contato direto com a forma de entretenimento e arte mais avançada do seu tempo: o filme cinematográfico.

Vale lembrar que nestes primórdios a atividade comercial cinematográfica era bastante dispendiosa, as distribuidoras americanas cobravam tudo do exibidor, desde uma taxa pelas caixas que acomodavam os rolos dos filmes no transporte (frete de ida e volta também pago pelo exibidor), passando pelas fotos e cartazes da publicidade, o trailer e os complementos (curtas e desenhos animados) exibidos nas sessões. Algumas vezes as distribuidoras alegavam que o filme tinha partes estragadas pela exibição e cobravam uma multa pelo "dano".

Recibo do aluguel do primeiro andar do sobrado onde funcionava o cinema

Recibo de pagamento do aluguel de um filme exibido no Cine Ipanema

Fatura de pagamento do frete e carreto de um filme

16. Programa da “soirée” (sessão noturna)

Uma sessão de cinema não se resumia ao filme em cartaz, antes da projeção do principal título da noite eram exibidos o trailer da próxima atração, um “short” (curta metragem com notícias ou eventos esportivos ou ainda paisagens e curiosidades do mundo) e um desenho animado.

Por exemplo, na sessão da noite de sábado de 21 de janeiro de 1950 (e que seria repetida no domingo 22), o filme em cartaz era “A Bela e o Monstro”, um drama de crime e horror. Antes porém o Cine Ipanema exibiu um “short” intitulado “Encanto nas praias” e dois desenhos do marinheiro Popeye: “Defendendo os pele-vermelhas” e “Homem pré-histórico”.

Popeye, conhecido por gostar de comer espinafre, foi criado por Elzie Crisler Segar em 17 de janeiro de 1929 (nesse ano de 2019 completam-se 90 anos da criação do marinheiro Popeye), na tira de jornal Thimble Theatre. Em 1933 foi adaptado em uma série de curta-metragens de animação para o cinema pela Fleischer Studios e posteriormente pelo Famous Studios para Paramount Pictures (a série produzida pelos estúdios da Paramount foi a que teve alguns exemplares exibidos no Cine Ipanema).

"A Bela e o Monstro"

17. Soc-soc, bang-bang

Segundo o espólio documental do cinema e depoimento testemunhal de José Francisco Filho ainda em vida, a programação do Ipanema era bastante variada, porém o gênero “western”, o popular faroeste, tinha a preferencia de grande parte do público, notadamente o público masculino. Inclusive foi um faroeste que encetou as sessões no cinema predecessor da cidade. O "western", que foi apropriadamente denominado pelo crítico francês André Bazin nos anos 50 como “o cinema americano por excelência”, reunia elementos em sua composição que provocavam fácil empatia nos espectadores sertanejos tão familiarizados com a paisagem rural, os cavalos, vacas e bois, as pradarias, serras, cactos, rios, cercas, porteiras, além da bravura daqueles "cowboys" empoeirados, armados com revolveres e rifles defendendo a honra, a lei e a ordem na base da bala e dos socos e pontapés.

As cenas de ação do faroeste provocavam gritos e apupos na plateia, os espectadores acompanhavam o tropel dos cavalos em disparada batendo com os pés no chão, aplaudindo com entusiasmo e colocando os dois dedos na boca para produzir aquele sonoro assovio.

Em contraste com as movimentadas cenas de lutas corporais e tiroteios, as cenas de beijo entre o cowboy e sua namorada provocavam um profundo silêncio, como se todos tivessem prendido a respiração subitamente petrificados na cadeira.

Na grade de programação do Ipanema, os muitos filmes de faroeste exibidos entre os anos de 1949 e 1951, traziam como astros os caubóis Gene Autry, Hopalong Cassidy (William Boyd), Roy Rogers, Tim Holt (caubói-astro do filme "Justiça Vingadora" que inaugurou o Cine Ipanema) e muitos outros.

18. Clássicos na tela grande do Ipanema

Nem só de bang-bang vivia aquele cinema instalado no sobrado que também serviu de escola, tribunal do júri e foi palco para encenações teatrais. Na programação igualmente tinha os clássicos dos anos 1930, considerados por grande parte da crítica internacional como a melhor fase do cinema narrativo produzido em Hollywood, é o momento da história em que a arte das imagens em movimento se livra de todas as amarras que a prendiam ao teatro e a literatura e passa a se expressar através de uma linguagem própria, de uma gramática especifica, de um código novo no campo da narração de histórias ficcionais, todo baseado em imagens e sons.

Desta safra foram exibidos em Santana a primeira versão de “Laffitti, o Corsário” de 1938, dirigida por Cecil B. de Mille e com Fredric March, Franciska Gaal, Akim Tamiroff e Anthony Quinn no elenco. Esse drama histórico, com duas horas e seis minutos de duração, versa sobre o famoso pirata Jean Lafitte cujo apoio ao exército americano foi decisivo na guerra anglo-americana de 1812, um episódio sangrento da história dos Estados Unidos que durou três anos (1812-1815) e foi determinante para solidificar a jovem nação recém libertada do jugo inglês.

Este filme foi exibido nos dias 15 e 16 de abril de 1950.

“Adversidade”, drama histórico que condensou as 1.224 páginas do romance “Anthony Adverse” de Hervey Allen em 141 minutos de filme, dirigido a quatro mãos por Mervyn LeRoy e Michael Curtiz e novamente trazendo na frente do elenco Fredric March, desta vez fazendo par romântico com a inglesa Olivia de Havilland ao som da majestosa trilha sonora composta por Erich Wolfgang Korngold, foi outro grande êxito daquela época de ouro do cinema hollywoodiano exibido em Santana.


O memorável clássico do cinema fantástico “King Kong”, que inclusive teve remakes nos anos de 1976, 2005, 2017 e agora, neste 2019, é um grande sucesso como musical na Broadway, impactou os santanenses na noite do dia 6 de novembro de 1949. O filme dirigido a quatro mãos por Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack em 1933, apresentava uma nova forma de aventura cinematográfica que mesclava horror e ficção-científica. A publicidade chamava o macaco gigante que aterroriza Nova York de “a oitava maravilha do mundo”.


Fatura do filme "King Kong" exibido em novembro de 1949

O escritor francês Vitor Hugo teve várias de suas obras adaptadas para a tela grande, uma delas foi “O Corcunda de Notre-Dame”. Essa segunda versão cinematográfica (a primeira foi na era do cinema mudo, em 1923) do livro de ficção histórica foi feita em 1939, com Charles Laughton como o atormentado Quasimodo e Maureen O'Hara como a bela e sedutora cigana Esmeralda, dirigidos pelo cineasta William Dieterle, um alemão que migrou para os Estados Unidos no início dos anos 1930. Dieterle produziu uma iluminação minimalista, baseada em suas experiências com o expressionismo ainda nos seus primeiros anos de cinema na Alemanha, traduzindo em convincentes imagens toda a carga dramática do submundo medieval da Paris do século XV que permeia o romance de Victor Hugo.

Charles Laughton faz o angustiado corcunda Quasimodo

O departamento de arte dos estúdios da RKO era conduzido pelo arquiteto Van Nest Polglase e tinha como seu mais próximo colaborador o artesão Carrol Clarck. Ambos trabalharam em mais de uma centena de cenários para os filmes da RKO, inclusive o revolucionário "set" de “Cidadão Kane” filme divisor de águas dirigido pelo lendário Orson Welles. É dessa dupla os cenários dessa versão de “O Corcunda de Notre Dame”. Este filme, produzido pela RKO em Hollywood, foi exibido no Cine Ipanema nos dias 14 e 15 de outubro de 1950.

Outra superprodução de Hollywood neste período áureo que foi exibida em Santana foi “Cleópatra”, produzida e dirigida por Cecil B. de Mille. No papel da rainha egípcia que conquistou Roma estava Claudette Colbert, os cenários suntuosos deste épico (uma característica das produções de De Mille) foram desenhados por Roland Anderson e Hans Dreier. Filme exibido nos dias 5 e 6 de agosto de 1950.


O celebre ator inglês Boris Karloff que brilhou em Hollywood nos anos 30 e 40 interpretando personagens de filmes clássicos de terror e mistério, foi o principal nome do elenco de "Ilha dos Mortos", produção da RKO exibida em Santana em agosto de 1949.

Fatura da RKO referente ao filme "Ilha dos Mortos"

19. Tarzan, guerra, “noir” e épicos

Quem acompanha a história do cinema sabe que o ator que melhor encarnou no século 20 o personagem Tarzan criado na literatura pelo escritor norte-americano Edgar Rice Burroughs foi o ex-campeão olímpico de natação Johnny Weissmuller, também é fato que o melhor Boy (filho adotivo de Tarzan e Jane) foi o ator Johnny Shefield. Dois exemplares dessa série de sucesso mundial produzida pela RKO foram exibidos em Santana: “Tarzan em Terror no Deserto” e “Tarzan, o Vingador”, ambos de 1943.

Johnny Weissmuller e Frances Gilford em "Tarzan, o vingador"

O Cine Ipanema ainda exibiu filmes produzidos na década de 1940, um período muito fértil dos estúdios de Hollywood que valendo-se do fato de os Estados Unidos estarem participando de uma guerra mas fora de seu território geográfico, intensificou o número de películas produzidas para poder suprir os mercados mundiais que já não podiam dispor dos filmes europeus em suas telas por motivos óbvios.

Dessa safra de filmes, o drama ambientado na segunda guerra “Cinco Covas no Egito”, dirigido por Billy Wilder em 1943, com Anne Baxter e o estupendo Erich von Stroheim interpretando o Marechal de Campo nazista Erwin Rommel, emocionou o público numa das sessões noturnas do velho cine.

Pôster de "Cinco Covas no Egito"

Roteirizado pelo próprio Wilder e Charles Brackett, tendo como base a peça do austro-húngaro Lajos Biró, “Cinco Covas no Egito” não é um filme de ação com ênfase nas cenas de combate. O diretor Billy Wilder, um migrante austríaco que fugira dos horrores do nazismo buscando refúgio seguro em Hollywood, preferiu uma abordagem centrada nos conflitos humanos, uma “guerra de personalidades” tendo como cenário um hotel no meio do deserto egípcio em plena segunda guerra. O microcosmo multinacional humano, representado por um inglês, um árabe, uma francesa e os alemães, todos confinados no hotel que é um “não-lugar” (no conceito proposto por Marc Augé), gera uma poderosa metáfora sobre a intolerância, inconsciência e a estupidez de uma guerra, onde afinal todos perdem.

Esse filme fez o "cabo Filho" relembrar os momentos vividos nos campos da Itália na dura batalha contra os exércitos de Hitler e Mussolini. Sobre as encenações da guerra feitas nos filmes ele costumava dizer com uma pitada de ironia: “Se a guerra real fosse como é no cinema seria uma maravilha”.

O “film noir”, subgênero de filme policial que predominou no cinema americano entre os anos 1939-1950, teve alguns exemplares exibidos em Santana. A dupla de atores formada por Alan Ladd e Veronika Lake estrelou alguns destes hoje clássicos do cinema em preto-e-branco. “Alma Torturada” é um deles, essa produção de 1942 foi exibida pelo Cine Ipanema em 28 e 29 de novembro de 1950.

Veronica Lake e Alan Ladd no ótimo "noir" "Alma Torturada", produção da Paramount

Recibo de pagamento à Paramount Films do aluguel do filme "Solar das Almas Perdidas"

Nas noites dos dias 10 e 11 de junho de 1950, o Cine Ipanema lotou para ver a saga dos três irmãos ingleses adotados que se juntam à Legião Estrangeira francesa no norte da África, depois que um deles rouba a famosa safira de herança da família adotiva. O filme era o épico clássico “Beau Geste”, baseado no romance do inglês Percival Christopher Wren, dirigido por William A. Wellman e estrelado por Gary Cooper, Ray Milland e Robert Preston (os 3 irmãos) e Susan Hayward.


“As Quatro Penas Brancas” dirigido pelo austro-húngaro Zoltan Korda, “Gunga Din” com Cary Grant e Joan Fontaine foram dois filmes épicos que fizeram vibrar o público no escurinho do primeiro andar do velho sobrado onde funcionava o Ipanema. A lista de títulos é longa, nos detemos nestes apenas para dar uma ideia do excelente cardápio cinematográfico servido por Zé Filho aos entusiasmados frequentadores do velho Cine Ipanema.


Cada sessão era um degrau a mais que aqueles espectadores neófitos subiam em direção ao desvelamento daquela arte única que se tornou possível graças a um fenômeno ótico conhecido como persistência da retina que todo ser humano carrega em seu conjunto ocular. Luzes apagadas na sala, entrava em ação o aparato que embaralhava imagens e sons provocando ora risos, ora lágrimas, ora fazendo o coração disparar na mais legítima emoção, ora relaxando a plateia no êxtase consagrador do beijo cinematográfico trocado entre o “artista” e a “mocinha”. Naqueles primórdios, uma sessão de cinema exigia apenas a atenção de dois sentidos: a visão e a audição. Sem embargo o impacto das imagens animadas revolvia todo corpo, puxando psicologicamente para dentro da cena aquela plateia de olhos arregalados e ouvidos atentos.

20. The End

No final do ano de 1951 o projetor americano marca Thompson do Cine Ipanema foi desligado pela última vez. A tela retangular branca do salão no primeiro andar do sobrado neoclássico foi removida. Restaram as paredes, testemunhas mudas de uma época de sonhos, alegria, algazarra, emoção, compartilhamento. No espaço vazio do velho Cine Ipanema ficou apenas a lembrança dos heróis de luz e sombras que um dia povoaram o imaginário mitológico de uma cidade que dava os seus primeiros passos no caminho da Idade Moderna, guiados pela lanterna mágica da Sétima Arte. O Cine Ipanema teve uma curta existência, mas o suficiente para deixar a indelével marca do pioneirismo, do marco inaugural de uma atividade de lazer cultural coletivo, de acesso democrático, sem diferenças, uma janela para ver o mundo a partir de Santana mesmo, sem necessidade de viajar fisicamente, apenas viajar nas asas da imaginação, do sonho, do encantamento.

(O sobrado seria demolido no ano de 1961, dez anos depois do fechamento do Cine Ipanema)

O pioneiro cinema de Zé Filho abriu caminho para o Cine Glória e, posteriormente, o Cine Alvorada.

O casal, José e Wanda, voltou para Campina Grande onde teve mais 5 filhos (os gêmeos Rômulo e Romero, Silvio (que faleceu prematuramente ainda bebê), Elizabeth e Danuza).

Gilvan (esq.), primogênito, formado em Direito e Teologia é pastor da Igreja Luterana no Canadá. Fernando (Badú, in memoriam), único nascido em Santana, tinha formação em Educação Fisica e era professor aposentado da rede estadual de ensino.

Rômulo Azevedo (esq.), é advogado e jornalista, professor da Universidade Estadual da Paraiba. Romero Azevedo, jornalista, professor aposentado da UFCG, autor do blog Memoria do Cine Ipanema - 72 anos.

Elizabeth Ângela (esq.), formada em Serviço Social é servidora pública em Brasília. Danuza é advogada e tem formação em Serviço Social, atua profissionalmente em João Pessoa.

Zé Francisco deu aulas de mecânica de automóveis no SENAI, depois foi nomeado auditor fiscal da Receita Estadual da Paraíba, era técnico em contabilidade, profissão que exerceu até se aposentar. No início da década de 1980, ele participou como consultor e coletor de peças raras para a criação do Museu Histórico de Campina Grande (era um "expert" em avaliar e adquirir essas peças em todo o Brasil).

Zé Filho é o principal personagem do documentário "Os Nove do Angico", produção e direção do pesquisador Charles Garrido abordando o destino das nove cabeças dos cangaceiros decapitados na grota do Angico juntamente com Lampião e Maria Bonita (disponível aqui).


Entrevista de José Francisco Filho aos jornalistas Romero Azevedo e Creusa Oliveira, em 1994, e que inspirou a produção do documentário "Os Nove do Angico"

Dona Wanda lecionou nos principais colégios privados e públicos de Campina Grande, tendo sido catedrática da disciplina Geografia no Colégio Estadual da Prata (conhecido como “Gigantão”) a partir da fundação daquele educandário em 1953. Também fundou e dirigiu colégios da rede estadual de ensino nos bairros de José Pinheiro e Liberdade nos anos 1960. Mais tarde, na década de 1970, foi Secretária do Trabalho e Bem Estar Social do município por 9 anos (duas administrações seguidas). Colaborou regularmente durante anos com crônicas semanais nos jornais locais, era membro fundador da Academia Campinense de Letras e é uma das patronas do Instituto Histórico de Campina Grande. Foi agraciada pela Câmara Municipal com o titulo de Cidadã Campinense e tem seu nome perpetuado em uma das ruas da cidade. Tinha formação em Pedagogia.

Os pais de Zé Filho foram morar em Campina Grande na primeira metade dos anos 1960, numa casa que ficava a menos de cem metros da dele. José pai morreu em 1983, tinha 88 anos; dona Dorinha, mãe, morreu em 2001 aos 103 anos de idade.

Dona Dorinha e José Francisco de Azevedo em Campina Grande na década de 1970

José Filho e sua irmã Amparo embora morando em Campina Grande nunca esqueceram o seu querido pé de serra. Foram eles que transmitiram para nós o amor, verdadeira devoção, à cidade que os viu nascer, onde passaram dias felizes na infância e adolescência, com a alma em festa nas cheias do mítico "Panema", e na primeira fase da vida adulta quando juntos concretizaram o sonho pioneiro do Cine Ipanema.
Quando estávamos finalizando esse relato, pedimos a nossa tia Amparo (que nós chamamos carinhosamente de Pau) para definir Santana numa palavra. Ela franziu a testa, surpresa com a pergunta, mirou o horizonte, suspirou profundamente e antes que uma lágrima que começava a se formar descesse sobre seu rosto, respondeu num sussurro: "Saudade".


A casa de Zé Filho e sua esposa Wanda Elizabeth na Paraíba era uma verdadeira “embaixada do sertão alagoano”, sempre recebiam e hospedavam parentes, amigos e aderentes. Essa diplomacia carinhosa e afetiva permaneceu até o fim de suas vidas. A dele em 25 de abril de 1995 aos 74 anos, a dela em outubro de 2011, aos 84 anos. O casal deixou 6 filhos, 19 netos e 15 bisnetos.

José Francisco e Wanda Elizabeth em 1978

A irmã, Maria do Amparo Pereira de Azevedo, morreu aos 97 anos em janeiro de 2020, em Campina Grande-PB; a cunhada Wilma Ferreira de Freitas, última testemunha viva desse momento  histórico, está com 88 anos, lúcida, viúva de Hélio Freitas, no Rio de Janeiro.

Wanda Elizabeth, in memoriam,  (esposa de Zé Filho) e sua irmã Wilma Freitas em 2010

Maria do Amparo( in memoriam), irmã de Zé Filho, em 2009

Essa é a história do primeiro cinema implantado em Santana do Ipanema há 75 anos.