No final da década de 1940, início dos anos 1950, a cidade que traz em seu nome a santa cujo culto foi oficializado pelo Papa Urbano IV no ano 1378, já era uma cidade com 74 anos de emancipação política (levando-se em consideração a Resolução nº 681, de 24 de abril de 1875, que a desmembrou da Comarca de Traipu). Segundo dados do Sexto Recenseamento do Brasil, divulgados pelo IBGE em 1950, a população de Santana do Ipanema era de 61.235 habitantes (incluindo os então distritos de Maravilha, Olho D’água das Flores e Poço das Trincheiras), isso significava mais da metade da população da Capital Maceió que no mesmo período tinha apenas 120.980 habitantes.
A organização urbana não era uniforme, mas tinha suas praças e ruas onde despontavam alguns exemplares de imponentes e belos prédios, erguidos segundo os cânones da arquitetura neoclássica e infelizmente hoje desaparecidos. A igreja matriz, uma relíquia desse tempo, foi preservada da reestruturação progressista que tocada pela premente necessidade de desenvolvimento delapida o patrimônio, desfigura a identidade histórica e borra para sempre da memória da população os outrora tradicionais pontos de orientação coletiva. Porém, é importante e justo reconhecer que muitas vezes a reordenação urbana impõe sacrifícios à memória de uma cidade, os antigos traçados urbanísticos, com ruas estreitas, becos sem saída, calçadas irregulares e edificações desalinhadas são redesenhados para atender as exigências do presente dando nova feição a paisagem física da cidade e nesse trabalho as demolições estão incluídas. É lamentável, mas é assim que funciona. "A força da grana, que ergue e destrói coisas belas", como já cantou o poeta.
A matriz de N.S. Santana, majestoso templo que mais se assemelha a uma catedral, resiste firme, imune aos tentáculos dos novos traçados da geografia urbana, e ainda hoje é ponto de referência no cenário secular- já beirando o sesquicentenário- daquela parte do centro unindo gerações que a trazem guardada em seu repertório pessoal e afetivo de imagens da cidade amada. Foi na pia dessa igreja que o pioneiro do cinema no sertão Zé Filho e a irmã Amparo receberam o sacramento do batismo pelas mãos do padre Bulhões, ele, nascido em 9 de março, em 1921, ela em 1922.
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Igreja Matriz de N. S. Santana na época do Cine Ipanema |
A feira semanal de Santana do Ipanema era bastante movimentada naquele final das quatro primeiras décadas do século 20. A feira reunia uma pequena multidão também vinda dos distritos, cidades e povoados encravados na região banhada pelo abençoado rio Ipanema. Esse ponto de convergência humana era um cenário vivo por onde desfilavam os tipos mais variados de personagens, comprando e vendendo naquele espaço multicultural que despertaria, sem dúvida, o interesse de qualquer antropólogo ou sociólogo que a visitasse. A feira atraia ainda para o seu pátio a céu aberto os artistas populares, cantadores, emboladores e declamadores dos versos imortais impressos nos folhetos de cordel. Nesse cenário multicor, além do abastecimento semanal dos alimentos necessários para a vida, que incluía animais vivos para o abate como galinhas, perus, bodes, carneiros, galinhas d’angola, pebas, tatus, e uma iguaria muito apreciada: o jabuti. Além disso, também se comprava a roupa, o vestido de chita, a calça de algodão, o “brim-caqui” para forrar malas ou cadeiras, a casimira (mais cara), própria para a confecção de ternos mais refinados, o chapéu de couro ou de massa, o calçado (se destacando a alpercata de rabicho, a preferida da maioria), o fumo de rolo de Arapiraca, os “quebra-queixo”, “rasga boca”, cocadas e alfenins que faziam a alegria da criançada. No fim da jornada, os homens davam uma pausa para tomar umas "lapadas" de cachaça (as mais variadas), acompanhadas por tira-gosto especial.
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Universo multicultural na feira em Santana do Ipanema |
A área do centro da cidade tinha o calçamento conhecido como pé de moleque (pedras irregulares socadas no chão, técnica da época do império) por onde circulavam alguns automóveis que dividiam com os carros de bois e os tradicionais jumentos aguadeiros (carregando água do rio para vender nas casas, ainda não havia saneamento básico) o tráfego pelas poucas artérias pavimentadas. O fornecimento de energia elétrica acabara de ser renovado sob a égide de uma usina com motor mais potente alimentado a óleo diesel que fornecia luz diariamente entre as 7 e 10 da noite, depois disso luz mesmo só na base de candeeiros, velas e lampiões a querosene.
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Calçamento em pé de moleque na rua Barão do Rio Branco em Santana do Ipanema |
As festas religiosas, como o São João, São Pedro e Senhora Santana, as novenas e procissões compunham momentos singulares da vida na cidade. Além dos ofícios nas igrejas, as quermesses com seus brinquedos armados no meio da rua, os pastoris e as barracas com variados jogos como: argolinha, pescaria, roleta e o jogo do preá, faziam a alegria da população naquele tempo em que o lazer coletivo era escasso. O trabalho dos tradicionais fogueteiros e os balões juninos que salpicavam de luzes e cores o céu estrelado formavam um espetáculo de rara beleza e era muito apreciado.
Registre-se também que fazia pouco mais de uma década que Lampião, Maria Bonita, Luiz Pedro, Quinta-Feira, Mergulhão, Elétrico, Alecrim, Colchete, Caixa de Fósforo, Macela e Enedina haviam sido fuzilados e degolados na Grota do Angico em Sergipe pondo fim ao ciclo do banditismo armado conhecido como cangaço que predominou e aterrorizou os sertões nordestinos por mais de três décadas. Mas a lembrança desse tempo em que a bala vinha antes da razão ainda permanecia muito viva na memória dos santanenses, mesmo porque a cidade fora palco da exposição macabra das cabeças degoladas dos bandidos na escadaria da igrejinha do Monumento.
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Maria do Amparo, irmã de Zé Filho, na adolescência |
Maria do Amparo Pereira de Azevedo, a única irmã de José Francisco, nosso principal personagem nessa narrativa, lembra o momento em que o pequeno caminhão trazendo as cabeças dos cangaceiros entrou em Santana no final de julho de 1938, diz ela: “Era por volta de uma da tarde, eu estava fazendo meus afazeres em casa,sozinha, sentada na mesa, de repente aquele barulho de buzina e do motor do caminhão e uma gritaria na rua, corri até a janela sem saber o que acontecia, então vi, passando bem em frente a nossa casa (Rua Barão do Rio Branco, 32), um soldado em cima da carroceria de um caminhão com uma cabeça segurada pelos cabelos numa mão e um facão manchado de sangue coalhado na outra”. Amparo disse que o soldado gritava brandindo o facão “Tão vendo aqui? É sangue de bandido que nós cortamos a cabeça! Acabou o reinado de Lampião!”. Essa imagem aterrorizou a jovem Amparo, recém entrada na adolescência. As outras dez cabeças dos cangaceiros estavam embebidas em álcool dentro de latas de querosene em cima da carroceria do pequeno caminhão. O horrendo séquito, seguido por uma pequena multidão, foi subindo na direção do centro.
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Cena do filme "Os últimos cangaceiros", de Wolney Oliveira (2011) |
Nesse período da história que contextualiza o recorte que fazemos neste resgate, as potências ocidentais que saíram vitoriosas da segunda guerra continuavam a reconstrução da Europa e do Japão, ao mesmo tempo a criação da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte, surgida em abril de 1949) preconizava o inicio da guerra fria entre a Rússia e os Estados Unidos.
Em 14 de julho de 1949, teve início o último julgamento de criminosos de guerra nazistas em Nuremberg.
No oriente, especificamente na China, os comunistas, liderados por Mao Tse-Tung, tomavam o poder e destruíam com fuzis e baionetas cinco mil anos de tradições e história, notadamente no Tibet.
Aqui no Brasil, na capital Maceió, uma tragédia provocada pelas fortes chuvas que caíram em grande parte do estado(inclusive em Santana) no mês de maio de 1949 trouxe morte e destruição como nunca vistas antes. Cerca de 70 horas de chuvas provocaram a queda de barreiras e uma tromba d’água, que desceu o Riacho Salgadinho destruindo casas e pontes do Vale do Reginaldo, incluindo a Ponte da Av. da Paz, tudo isso entre os dias 18, 19 e 20.
O governador da época, Silvestre Péricles de Góes Monteiro, diante da calamidade pediu ajuda ao Governo Federal para abrigar os flagelados e recuperar as muitas cidades atingidas no estado, inclusive na área ribeirinha do rio São Francisco. O prefeito de Maceió nesse período era João Vasconcelos.
O sucesso musical era "Juazeiro", baião de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, um 78 rotações lançado pela RCA em outubro do ano anterior. Ouça aqui:
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Governador Silvestre Péricles (Foto: Jean Manzon) |