4. O protagonismo do cinema naqueles tempos primeiros
O homem sempre buscou perpetuar em imagens sua trajetória sobre a terra. Ainda na pré-história, as cavernas abrigavam desenhos que reconstituíam animais e cenas de caça. No multissecular Egito os papiros e as paredes e colunas dos templos, tumbas e palácios foram cobertos por desenhos coloridos que ainda hoje intrigam e encantam povos de todo o mundo. Na China, nos primeiros momentos dessa civilização, a Lanterna Mágica já procurava dar movimento aos desenhos projetados sobre uma delicada tela da mais pura seda. Mas é no século XIX que os aprimoramentos técnico-científicos vão permitir uma reprodução mais fiel da realidade através da fotografia e, sobretudo, do cinema.
Nomes como Wlliam Friese-Greene, Thomas Alva Edison, Etienne-Jules Marey, Louis Le Prince, Louis e Auguste Lumière, George Mèliés, D.W. Griffith, entre muitos outros, foram os pesquisadores, empreendedores e artistas que dedicaram suas vidas para proporcionar a humanidade o que hoje chamamos de cinema ou audiovisual.
Essa maravilhosa invenção só foi possível porque todos os seres humanos possuem um “defeito” ótico chamado cientificamente de “persistência da retina”. Em síntese é o seguinte: o olho envia para o cérebro, uma a uma, as imagens que capta. O cérebro não consegue decodificar essas imagens
instantaneamente criando assim um intervalo de 1/24 avos de segundo entre uma imagem e outra que recebe dos olhos. A técnica do cinema (da televisão e do celular também) é essa, são projetadas 24 fotografias fixas por segundo causando a ilusão ótica do movimento (sabe-se também que a cumplicidade psicológica dos espectadores é fundamental para a materialização do espetáculo audiovisual).
O cinema foi a principal marca da modernidade no século 20. Não bastava a cidade ter biblioteca, automóveis, luz elétrica, prefeitura,
câmara de vereadores, juiz, escolas... O que selava a entrada da cidade na era da modernidade era a instalação de um cinema!
O cinema foi sem dúvida a “arte do século 20”, na afirmativa do cineasta Glauber Rocha. O último filho da Revolução Industrial trouxe para o campo da arte e do entretenimento a principal criação daquela reviravolta iniciada na Inglaterra no século 17: a máquina.
Sintetizando, podemos dizer que o cinema, em sua forma narrativa, é uma máquina de contar histórias.
O cinema unia arte, cultura e, sobretudo tecnologia, tudo isso movido a energia elétrica, outro signo de progresso naquela primeira
metade do século 20.
No ano de 1949, o cinema e a modernidade finalmente chegaram a Santana do Ipanema pelas mãos de um de seus filhos, o ex-combatente da
segunda guerra mundial José Francisco Filho (que lutou naquele conflito entre as nações ao lado dos conterrâneos Darci de Araújo Melo, Alberto Nepomuceno Agra, Vandir Brandão, João Aquino Silva, José Francisco dos Prazeres, Osório Nobre, Pedro Pacífico Filho, Pedro Alves da Silva e Sandoval Vieira Barros).
O primeiro contato de José Francisco Filho com a invenção codificada num só aparato, pelos franceses, irmãos Lumière, foi na cidade de Santos, São Paulo, no ano de 1938. Com o espirito aventureiro que o caracterizava, pediu permissão ao pai e embarcou num caminhão para o litoral paulista a fim de se encontrar com um tio que morava na cidade portuária. Nessa época tinha acabado de completar 16 anos e foi lá em Santos onde entrou pela primeira vez num cinema. Aquela experiência única causou uma forte impressão no jovem sertanejo, num depoimento dado a nós ele disse que a primeira coisa que pensou diante da tela iluminada naquela distante Baixada Santista foi "ah, se meus conterrâneos também pudessem ver isso!". Onze anos depois, e uma guerra mundial pelo meio (guerra para a qual se alistou como voluntário), levaria para o desfrute dos conterrâneos o moderno, inigualável e maravilhoso mundo do cinema.
Foi em Santos também onde o jovem José viu num jornal a manchete anunciando a morte de Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros do bando.
Neste século 21 vivemos uma verdadeira “sociedade das imagens”, existe uma saturação de imagens em movimento onde quer que nos encontremos, na rua, em casa, na escola, no trabalho, no shopping, o que não falta é imagem e som artificiais. Hoje, a impressão que se tem é a de que a realidade tem de ser confirmada pela imagem virtual para poder ter credibilidade, diante de qualquer fato acontecido vem logo a pergunta: “filmou?” A antropóloga Débora Bolsanello confirma essa verdadeira adição desses tempos de agora numa entrevista dada ao jornal "O Globo" do Rio de Janeiro em outubro de 2017, diz ela com propriedade: “Passamos mais tempo olhando telas que pessoas”.
Mas, no mês de abril do ano 49 do século 20, há setenta anos, no interior do nordeste brasileiro, as imagens artificiais, incluindo as fotografias, eram raríssimas. Nesse universo da reprodução da realidade através de aparatos óticos-químicos-mecânicos, o cinema reinava absoluto e seu poder de encantamento e sedução visual beirava o sobrenatural, era algo que, para o senso comum, estava mais próximo da magia que da tecnologia. O ritual da sala escura, se assemelhando às cavernas primitivas da pré-história de onde o homem assistia a tudo passando “lá fora” sem ser molestado, a experiência do desfrute coletivo do filme, tal e qual um culto profano às imagens dos “deuses” da tela grande (lembrando,talvez, no inconsciente dos espectadores a reunião dominical na igreja para a celebração da liturgia católica diante das imagens do altar). É nesse contexto de descobertas, cerimônia, rito e deslumbramento com o novo culto pagão, trazido no bojo da modernidade, que surge o hoje quase lendário Cine Ipanema.
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